quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Pintura íntima (o ébano)








Por Miriam Martins


Sentada na escada de acesso ao Studio, Veronika tragava um de seus cigarros de canela e refletia sobre as contas atrasadas do mês anterior, enquanto aguardava a cliente que chegaria de Madrid. Ela ligou meio assustada, dizendo que pretendia fazer um quadro seu para presentear o namorado, um Francês inesquecível que conhecera em Paris. Após algumas horas de atraso, que resolveu esperar para levantar algum dinheiro, já que as vendas estavam fracas, começou a baixar as cortinas e trancar as janelas, colocando os ferrolhos e as roldanas. Percebeu um barulho de motor de carro subindo a ladeira e naquele horário era difícil alguém cruzar a estrada para Toulon, a 60 km de Saint Tropez, talvez na década de 60, quando Madam Bardot mudou-se para a ilha, revolucionando definitivamente a província de Côte d’Azur e tornando aquela vila um verdadeiro paraíso para o hedonismo de luxo. Tornou a girar a chave, seguiu em direção ao largo portão de ferro cinza e puxou a alavanca para olhar pela portinhola. Um homem alto, negro, de cabelos cortados e pernas longas com um lenço azul amarrado no pescoço abria a porta do carro para que a mulher branca, esguia de cabelos ruivos encaracolados na altura dos ombros descesse. Segurou em seu braço esquerdo e a conduziu até o portão cinza. Fechei a portinhola e abri, empurrando a maçaneta emperrada para fora.
- Maria Claudia? – Perguntou em voz alta, depois de apagar o último cigarro com a sola de sua bota, o que a fez lembrar que trabalharia por toda a noite, sem poder dar sequer um trago para aliviar o cansaço daquela interminável espera. A espanhola tratou de apresentar seu namorado, Jean Pierre. Veronika cumprimentou-o timidamente e sentiu suas maçãs ficarem rubras com um sorriso tão amigável e um aperto de mão tão incomum. Subiram a escada até o hall de entrada e Veronika acendeu alguns holofotes, respeitando a pequena penumbra que a inspirava pintar. Enquanto preparava as tintas e separava as telas novamente, repondo o que já havia guardado, percebia que o homem rodeava o Studio olhando seus trabalhos expostos e vez por outra fazia alguma pergunta irrelevante.
Começou a esboçar o que se tornariam traços aguçados das curvas da espanhola e a bela moça ruiva não se sentia envergonhada com sua nudez e sem se mover sequer um milímetro, a pedido da pintora, concentrava-se para não causar qualquer descompasso ou falha nos traços que Veronika desenhava. O homem a incomodava e Veronika sentia-se desconfortável com a presença daquele ébano em seu Studio. Ele fitava seus braços, suas mãos com o movimento do lápis e seus olhos fixos no manequim a sua frente. Ela rogava para que o fim chegasse e pudesse finalmente sair daquele transe, finalizando a encomenda. Já podia sentir o gosto da canela em sua boca e o cheiro da fumaça do seu cigarro em seu nariz. Terminou. Seu último rabisco havia sido dado. Definitivamente não achava que o trabalho havia sido concluído com êxito, mas aquela mulher nua em sua frente ficara deslumbrada com a pintura e extremamente sorridente com o resultado final, tratando de se vestir, após escrever uma extensa dedicatória ao homem, enquanto Veronika, no canto da sala, apanhava um pedaço do que sobrou de um velho cigarro no cinzeiro ainda não esvaziado. Pediu desculpas em voz alta, do outro canto da sala, explicando-se. Precisava realmente de um longo trago, depois de um trabalho duro. O homem acenou com a cabeça, indicando que não se importava e Maria Claudia tampouco conseguia notar algo que não fosse permanecer na vaidade de apreciar a pintura que segurava nas mãos.
- Lindo. Esplêndido. - Dizia ela, com certa felicidade e trazendo um brilho diferente nos olhos.
Veronika pensava que não podia ser outro o motivo senão aquele ébano que a acompanhava, o verdadeiro responsável por toda aquela alegria.
Deixaram o Studio por volta das onze e após a ruiva pagar pelo trabalho de Veronika, o casal deixou o local, prometendo voltar com uma amiga Chilena que também estaria interessada em uma pintura.
Muito cansada, resolveu acomodar-se no andar superior do sobrado, onde havia uma velha escrivaninha com uma antiga máquina de escrever que pertenceu ao seu avô paterno, um lavatório de louça branco, um banheiro pequeno com azulejos verdes e um sofá no canto da janela, ao lado da escrivaninha. Após alguns goles de vinho que havia deixado da última garrafa que abriu, procurou por mais cigarros e desistiu após a exaustão que lhe açoitava os braços. Apagou as luzes, deixando somente o abajur aceso, adormecendo em questão de segundos. Sentiu-se presa, deveria ser um sonho irritante, mas não conseguia mover os braços ou desvencilhar as mãos que estavam amarradas por um lenço azul. Era ele. Não estava sonhando. O que fazia ali tão cedo? Adormeceu ou ele a mantinha em cárcere desde a noite anterior. Havia bebido vinho, mas não o suficiente para se embriagar ao ponto de perder a memória. Abriu os olhos e não era um sonho. Era real. Podia reconhecer aquele sorriso em qualquer lugar do planeta. Contemplou o olhar intrigante do Francês e pensava como nunca havia visto aquele Deus negro nas ruas de Paris. Ele a segurava pelos cabelos e ela não oferecia resistência. Ele a beijava dos pés à cabeça e ela se entregava naquele ritual, permitindo que ele satisfizesse todos os seus desejos. Amaram-se por horas sem parar e vestiram-se, depois de muitos abraços carinhosos. Ela descobriu o que aquele homem queria com ela, depois daquele olhar intrigante da noite anterior. Ele puxou um maço de cigarros de canela e envolveu-o com uma de suas mãos, agora já desamarradas. Sentaram-se no chão, abaixo do sofá marrom e conversaram pouco. Ele disse apenas que havia deixado café na escrivaninha e desceu as escadas, alcançando o portão cinza.

Passaram-se sete anos e Veronika nunca mais encontrou aquele Deus ébano. Jamais voltou ou deu qualquer telefonema, deixando-a confusa se o que aconteceu foi sonho ou realidade.

Com o passar do tempo, conseguiu mais clientes, entretanto a ruiva não voltou com a amiga, como prometera.
E como de costume, sentou-se na escada para fumar o seu preferido de canela. Quando se preparava para subir ao segundo andar, ouviu uma voz feminina com sotaque estranho a chamar por fora do portão cinza. Abriu a portinhola e uma mulher baixa, de cabelos pretos, com olho puxado, vestindo uma saia longa vermelha e botas pretas, perguntou: - Por favor, é aqui que se faz pintura íntima? – Veronika respondeu que sim, já indagando de quem se tratava. Ela disse ser chilena, que seu nome era Shien Lee e que veio por indicação de uma amiga colombiana chamada Maria Claudia Rodriguez. Veronika acenou com a cabeça e abriu o portão. Seus lábios pareciam transparentes, suas pernas ficaram bambas e sentiu que seu olhar a denunciava naquele momento. Pensou que fosse desmaiar e tudo voltou em sua mente como num passe de mágica. O cheiro do ébano, as mãos que envolveram seu corpo e retornando do transe convidou-a para entrar. Entraram no Studio e a mulher muito tímida despiu-se, deixando cair um lenço azul de dentro de sua blusa, fazendo com que Veronika parasse. Naquele exato momento pôde fitar o lenço azul. Pegou-o nas mãos trêmulas e levou-o até o nariz. Sentiu o inesquecível cheiro por alguns instantes, deixando dúvidas para a chilena que a assistia com olhar assustado e resolveu quebrar o ritmo do espetáculo dizendo: – Um amigo que conheci. Ele gostava de usar esses lenços. - Tratou de fingir para a moça que imediatamente indagou: - Esse seu amigo por acaso é um francês chamado Jean Pierre? – Não. Ele é da Grã-Bretanha e se chama Edgard Grumm. - Respondeu sem hesitar.

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